sábado, 18 de abril de 2009

O Mosaico das Memórias

Coletamos ao longo da vida um imenso repertório de memórias em nossas mentes. Pessoas, lugares, eventos, estórias, habilidades variadas e muitos detalhes triviais. Como é possível seguir acumulando informações por tanto tempo, sem confundi-las ou esquecê-las no caminho? Como é possível evocar a textura fina dos fatos passados, muitas décadas depois de sua ocorrência? Que mecanismos permitem-nos modificar lembranças antigas de maneira seletiva, sem causar danos às lembranças associadas? De que matéria resistente e plástica são feitas as memórias?

Sabemos hoje que as memórias residem na vasta rede de células excitáveis que compõem o sistema nervoso, os neurônios. Cada neurônio se interliga a milhares de outros por intermédio de microestruturas chamadas sinapses. São estes minúsculos pontos de aproximação inter-celular que permitem a propagação em cascata da excitação neuronal. Embora a distância sináptica entre duas células seja muito pequena, raramente verifica-se um contato físico direto.

A grande maioria das sinapses apresenta uma separação celular da ordem de 20 nanômetros. Nestes casos, a transmissão da ativação de uma célula a outra é unidirecional e baseia-se na difusão de neurotransmissores, moléculas liberadas por um neurônio pré-sináptico capazes de ativar receptores químicos na célula pós-sináptica. Dependendo dos tipos de neurotransmissores e receptores envolvidos, tal processo pode determinar tanto a excitação quanto a inibição das células pós-sinápticas. Qual é a relação entre a transmissão sináptica e a formação de memórias?
Quando uma sinapse é estimulada com alta frequência, observa-se um aumento subsequente de sua eficácia de transmissão, isto é, a célula pós-sináptica passa a responder de forma aumentada a um estímulo pré-sináptico. Por outro lado, uma estimulação de baixa frequência resulta na redução prolongada da transmissão sináptica. Tais efeitos, conhecidos respectivamente como potenciação e depressão de longo prazo, conferem às sinapses uma memória fisiológica dos eventos recentes. A potenciação de longo prazo permite que sinapses muito utilizadas se tornem mais fortes ao longo do tempo. Da mesma forma, a depressão de longo prazo enfraquece sinapses pouco utilizadas.

Recentemente demonstrou-se que a estimulação de sinapses isoladas causa um fortalecimento local, sem alteração das sinapses vizinhas (Matsuzaki et al., 2004, Nature 429: 761-766). O truque por trás desta façanha tecnológica foi a utilização de neurotransmissores sintéticos que se tornam ativos apenas quando iluminados por lasers de alta precisão. Este método revelou que a estimulação de sinapses isoladas causa uma expansão persistente e tópica do volume pós-sináptico. Esta expansão converte sinapses imaturas, pequenas, fracas e instáveis em sinapses maduras, grandes, fortes e estáveis. Assim, a estimulação de redes neuronais específicas causa modificações morfológicas ao longo de toda a trajetória de ativação sináptica, resultando na estocagem duradoura dos padrões de excitação neuronal aos quais chamamos memórias. Considerando que o cérebro humano contém cerca de 100 bilhões de neurônios, que cada neurônio tem cerca de 10 mil sinapses, e que cada sinapse pode ser potenciada ou deprimida com várias magnitudes diferentes, não é difícil conceber que nossa estupenda capacidade de memorização reflete o pontilhado combinatorial da codificação sináptica. Que aspecto têm as memórias? Se fossem as telas de um pintor, este seria Seurat.

Sidarta Ribeiro é Ph.D. em neurobiologia pela Universidade Rockefeller e pesquisador do Instituto Internacional de Neurociências de Natal (IINN). Fez pós-doutorado na Universidade Duke (2000-2005) investigando as bases moleculares e celulares do sono e dos sonhos e o papel de ambos no aprendizado.

Fonte: Viver Mente e Cérebro

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