sábado, 18 de abril de 2009

O Hospício não é Deus

por Moacyr Scliar

Apolo era um deus que se poderia chamar de polivalente. Associado com a literatura e as artes era também invocado por aqueles que buscavam a cura de uma doença. Significativa coincidência, esta: existe, sim, relação entre medicina e literatura. Em ambos os casos, a palavra desempenha um papel fundamental.

Na psicoterapia a palavra desempenha um papel fundamental, como instrumento de ajuda psicológica. Na literatura, a palavra, matéria-prima para a criação estética, ajuda a explicar a complexa relação entre seres humanos, incluindo a relação médico-paciente. Doença e medicina são temas preferenciais de grandes escritores, sobretudo a doença mental, como em Cervantes, Nicolai Gogol, Virginia Woolf e Sylvia Plath, entre outros. No Brasil, Machado de Assis.

São numerosas as referência a problemas mentais na obra machadiana, grande parte dela escrita com "as tintas da melancolia" para usar uma expressão do próprio Machado, que aborda o tema da loucura de maneira mais específica em O Alienista, de 1881. Este conto longo (ou novela curta) tem como cenário a modorrenta cidadezinha de Itaguaí, em "tempos remotos", difíceis de identificar.

O que provavelmente é proposital; o fim do século 19 viu a ascensão dos alienistas, médicos que tomavam conta dos "alienados". À época não havia qualquer tratamento eficaz para a doença mental; os alienistas limitavam-se a classificar o distúrbio do paciente, e indicavam a internação daqueles considerados perigosos. Este período marcou o auge da instituição asilar - o hospício. O poder dos alienistas era muito grande e Machado certamente não queria brigar com eles; daí a opção pela referência vaga.

A Itaguaí chega um alienista, o Dr. Simão Bacamarte (o sobrenome é sugestivo), que funda um estabelecimento para alienados. É a Casa Verde, que logo começa a receber hóspedes. A exemplo de outros alienistas, Bacamarte dedica-se a rotular os pacientes conforme as doenças de que são portadores. Mas seu objetivo é descobrir a causa última da enfermidade mental e o "remédio universal" para ela. Difícil empreendimento; o alienista constata que o problema da loucura é muito maior do que pensava: "A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente".

De qualquer modo a insânia deve ser combatida: o menor desvio da suposta normalidade é pretexto para uma internação. O alienista detém agora o poder, o que gera uma revolta popular. Bacamarte não se abala: questionado pelos rebeldes, replica, altivo: "Não dou
razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus". Intimidados, os chefes da rebelião vacilam - e aí uma força enviada pelo vice-rei acaba com a revolta.

O poder do alienista chega ao máximo: interna dezenas de pessoas, inclusive a própria esposa. Mas um perturbador raciocínio acaba por lhe ocorrer: se a loucura é tão disseminada o hospício deveria ser reservado não para os enfermos, mas para os sãos - no caso, ele próprio. Tranca-se na Casa Verde, agora vazia, entregando-se ao "estudo e à cura de si mesmo", vindo enfim a morrer.

O Alienista não discute apenas a doença mental. Machado está nos falando do poder, da arbitrariedade. É o poder que resulta de um suposto conhecimento. Mas este conhecimento, exatamente porque suposto, não dá ao dr. Bacamarte qualquer segurança. Ao contrário, seu estado de espírito oscila entre a onipotência e a impotência, a euforia e o desânimo. Como ele, a psiquiatria à época estava doente.

Esta situação viria a se alterar nas décadas seguintes. Em 1900 Freud publica A Interpretação dos Sonhos, mostrando o papel do inconsciente na gênese dos problemas emocionais. Revolução conceitual, sucedida por uma revolução farmacológica: em meados do século 20 eram introduzidas drogas para tratar psicoses, depressão, ansiedade. O resultado foi um esvaziamento dos hospícios. A internação hoje obedece a indicações bem definidas e é, freqüentemente, transitória. O Hospício é Deus, foi o título que Maura Lopes Cançado deu a um livro de 1965. Não, o hospício não é Deus, como descobriu, para seu desgosto, o dr. Bacamarte. O tratamento da doença mental foi desmistificado, e com isto os alienistas perderam um poder que, de fato, nunca tiveram. O que foi bom para os pacientes e bom para eles também.

Moacyr Scliar é médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.

Fonte: Revista Viver Mente e Cérebro

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